"No tempo de fome no Alentejo, (...) a açorda era o alimento quase exclusivo dos trabalhadores alentejanos durante os meses de Inverno. No Verão, a açorda era substituida pelo gaspacho. Claro que as açordas comidas pelos trabalhadores não tinham os requintes do bacalhau, da pescada ou de qualquer outro acompanhamento. Mesmo o azeite não era empregado na devida quantidade.
À açorda assim comida sem qualquer acompanhamento, chamava-se "açorda pelada", às outras, aquelas bem temperadas, só os senhores tinham acesso. Havia agrários que comiam o bacalhau nas suas açordas e, num gesto magnânimo, mandavam guardar as barbatanas, para serem cozidas na água da açorda da malta. (...) Diz-se que as açordas fornecidas pelos lavradores não fazem bem nem mal (são só pão e água) e, diz-se também, que caem nas calças e não põem nódoas (não têm azeite).
Nas grandes casas de lavoura, havia a cozinha da ganharia onde se faziam, por vezes, açordas individuais, sendo distribuido a cada um um pequeno dedal de azeite. Alguns trabalhadores exigiam que na açorda de segunda-feira, deitassem o azeite a que tinham direito até sábado. assim, comiam, pelo menos, uma açorda como devia ser, bem untada. O resto da semana comiam mesmo só pão e água com o tempero do alho e dos coentros.
(...) No tempo da laboração dos lagares, mandavam-se as crianças, pouco antes do nascer do sol, para que não fossem vistas a roubar, recolher dos esgotos com uma colher, o azeite que, congelado, flutuava na água ruça. Voltavam então para casa, descalços, sobre a água encaramelada, com o azeite para a açorda do dia.
A açorda costuma ter por acompanhamentos o bacalhau, sardinha assada ou pescada. Mas nas casas de gente pobre, come-se a maior parte das vezes a "açorda pelada", sem qualquer acompanhamento, ou então com um punhado de azeitonas que eram contadas e distribuidas por cada membro da família, pois essas azeitonas, apanhadas durante a noite ou nas madrugadas geladas, custavam um preço bem alto. (...) Quem fosse encontrado a apanhar azeitona era severamente castigado. mesmo as que eram deixadas ao abandono."
( em "Os comeres dos ganhões" de Aníbal Falcato Alves, Edição "Campo das Letras", Porto, 1994)
Achei interessante este texto, afinal publicado num livro de receitas de comida de ganhão (trabalhador rural alentejano), para meditar acerca do nosso nível de vida e para as boas almas irritadas por não se "comer bife todos os dias" pensarem melhor no que Portugal já foi e não quer voltar ser.
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