quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ultimo correio de S.Marta


Este meu companheiro pequenino computador Fujitsu vai hoje regressar às mãos da sua dona, pois tudo vai ser arrumado para que parta amanhã. Assim acabaram-se os posts colocados aqui no hospital, e vou passar a escrever a partir de casa.

Esta maquininha foi preciosa, ocupou um pouco dos meus dias, deu informação a quem a procurou aqui, e manteve um canal muito especial com o exterior diferente daquele que é dado noutros meios, e dado que não lia jornais pois a vista ainda não me permitiu, essa ligação era a rádio, que prefiro para mim, por me falar de auricular ao cérebro quase directamente. A televisão afastou-me mais, pois durante um tempo tinha dificuldade de acompanhar som e imagem em simultâneo, e vendo bem, tirando a SIC Notícias, é vira o disco...


Passei de 21 a 29 de Setembro, no hospital de Beja, e de 29 de Setembro até hoje em S. Marta. Percorri um caminho com várias fases, e para todas estabeleci metas, mentalmente, e embora só em pequena parte dependesse de mim, todas foram alcançadas; foi uma dádiva, que não posso jamais esquecer.


A 22 de Setembro foi o "anuncio" de que iria para transplante, embora já há algum tempo estivesse-me a preparar, aceite em S.Marta. Esse dia classifiquei-o de o "mais longo da vida", pois antevi a dimensão do percurso, e a minha fragilidade frente a essa montanha.


A 27 de Outubro foi a "tomada de decisão", pois apesar de aceite, foi necessário verificar através de uma bateria de exames, em que me viraram do avesso, e fizeram o necessário, e retiraram quase metade do sangue das veias, que eu reunia as condições para o fazer.


A partir daí foi a "espera". O mais desesperante de tudo, e o aspecto onde a cabeça e esta maquininha mais me ajudou. Um dia animado, outro caindo mais, mas jamais deixei de ter uma rotina diária de coisas a fazer para me ocupar e não deixar a cabeça fugir para a almofada, para a insónia, para o abandono. Escrevi diário, coloquei posts, procurei ler como podia, e muitas vezes não podia, reduzi visitas a 3 pessoas, pois as visitas acabavam por incomodar. Aprendi a pedir pouco, só mais uma manhã.


Até que existiu essa manhã. Foi a fase da "concretização", que surgiu assim, vinda não sei donde com naturalidade. Relembro a tarde desse dia 26 de Dezembro, com angústia, pois quando me foi anunciada a "vaga hipótese", era vaga, pois a compatibilidade não fora ainda testada. Deitei-me e passei toda a tarde numa espera de ansiedade, de pânico, de medo, misturados. Até que se seguiu a "confirmação". Relembro todo o pessoal da Unidade a desejar-me sorte e a torcer por mim. Até a copeira da ICA, a Dona Ana, me veio dar um toque na cabeça para me encorajar.


Seguiu-se a "recuperação" em duas fases bem diferentes. No isolamento, em que tudo me aparecia à frente, dado por pessoas mascaradas de "zombies", mas em que as máquinas me manietavam, e só desejava ser solto. No quarto de enfermaria, em que os primeiros dias de autonomia me custaram os olhos da cara. Mas, adoptando algumas estratégias, fui ultrapassando as dificuldades, permanecendo apenas algum resto, ainda importante de edema nos pés.


E agora entro em nova fase. Aquela que tenho aqui falado nos últimos dias, e que simultâneamente desejo e me assusta, pelas novas barreiras. Mas já ultrapassei tantas, que não será a minha propria casa que me vai vencer.


Tenho consciência que tive uma segunda oportunidade de vida, com este coração, de alguém que morreu e que acabou salvando uma vida onde duas se perderiam. Não sei a quem agradecer, mas lembro-me que sera alguém amado, chorado, que tinha a sua vida normal e caiu para o lado errado na hora errada. Não posso agradecer, mas a gratidão mora aqui em abstracto sem destinatário directo, posso virar-me para Deus afinal.


Não há mais oportunidades e terei de tratar muito bem do coração que me deram, esta talvez seja uma forma de agradecer a quem generosamente, não interditou a retirada dos seus orgãos, e tornou isto possível.


Para todos obrigado e até amanhã em casa !!!

1 comentário:

  1. Caro Amigo Carlos,
    Seja bem vindo.
    Uma nova vida, uma nova oportunidade.
    Os Anjos não andam todos pelo céu, tambem os hà na terra.
    E penso que tem muitas formas de "agradecer".
    Com toda a informação sobre a sua doença, como doente.
    E dando aos outros o que puder dar, pq a si alguem deu tudo o que precisa receber.
    E dar nem sempre significa algo de material.
    Os maiores dos bens são imateriais.
    Aproveite e divirtasse neste novo tempo.
    Um Abraço,
    Ana

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