Ía agora iniciar a derradeira etapa do meu Inter Rail. A viagem de Paris a Lisboa já perdera o interesse, já a tinha feito, mas no sentido contrário. Por ali tinha começado e ali terminava. Tinha-me despedido de Paris na noite anterior nos luminosos Campos Elísios. A cidade deixou uma marca em mim de forma indelével, mas só em 1983, 10 anos depois voltaria. Pelo meio veio o 25 de Abril, e tudo o que se seguiu, deu outras prioridades à minha vida, mas a ligação manteve-se.
Atravessei França durante o dia, o comboio vinha quase vazio, nada do que se passara cerca de um mês antes agora se repetia, tudo era mais calmo, não estavamos já em altura de retorno de emigrantes. Chegámos a Hendaye pelo final do dia, e repetia-se a operação de mudar para o comboio português, que me traria a Lisboa. A qualidade era a mesma. Ao entrar naquele comboio já se percebia donde viera e para onde ía. A travessia de Espanha fez-se durante parte da noite, e desta vez quase não dei por nada. O compartimento trazia uma ou duas pessoas, podia dormir à vontade enquanto o comboio deslizava, rumo a Vilar Formoso, onde me esperava os procedimentos do costume. A PIDE a controlar as entradas, a ver tudo à lupa, havia que esconder um ou outro livro que tinha comprado, dissimular, ser um "patriota" como se preconizava na altura dos "oito séculos de história."
A entrada em Portugal fez-se já na madrugada, e faltava agora aquele caminho ronceiro até Lisboa, onde acabei por chegar pelo inicio da tarde. Não havia ninguém à espera, só tinha mesmo de pegar na tralha, pôr tudo às costas e ir apanhar um barco para Cacilhas e autocarro até casa, tudo normal, como se acabasse de vir das aulas no Técnico, num dia habitual.
Agora, já tinha visto como era. Antes de sair já sabia o país onde estava, o regime que o dominava, a iniquidade da guerra, a repressão, a falta de liberdade, a moral ridícula que dominava os costumes, as peias que entorpeciam quem se deixava entorpecer pelas verdades oficiais. Agora, embora de forma superficial, conhecia um pouco do que se passava no exterior, as possibilidades que existiam. A viagem tinha sido muito mais do que uma viagem, era uma lição, o Inter Rail era mais do que um simples bilhete de comboio, era um passaporte para uma outra realidade, que existia mesmo, por muito que o regime, depreciasse sempre o que se passava "lá fora".
Por isso pergunto, no mundo actual onde viajar se tornou quase um vício, devoram-se cidades, vilas, locais, praias para torrar, estancias "tudo incluido", não se pode passar sem fazer férias "lá fora", mas agora na Tunísia, na Rep Dominicana, ou na Riviera Maya, e aos vinte anos já se foi a todos esses locais, mas sabe-se menos do mundo e do país do que se jamais se tivesse saído de casa e se visse o mundo pelo canal de cabo, pergunto-me, pensando na minha viagem de há 40 anos, ainda existe o Inter Rail ?
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