terça-feira, 31 de agosto de 2010

O taberneiro

Voltemos agora à história de vida do senhor Jerónimo.
Quando a enfermeira lhe perguntou o que fazia respondeu "Sou taberneiro!!" Fiquei desconfiado, pois as suas falas, o seu polimento, o seu humor leve, não indicava tal profissão. Afinal era verdade, mas havia muito mais para contar, a ser verdade o que me contou ao longo de dias.
Como adolescente trabalhou num armazém de roupas da Rua dos Fanqueiros em Lisboa, mas a vontade de aprender e de ser independente, levou-o a Paris e Londres onde, seja por conta do patrão, seja por conta própria, fez formação em grandes armazéns, entre eles o Harrods, onde aprendeu a arte da costura, da "alta costura", segundo ele. Estavamos nos anos sessenta, pois o senhor Jerónimo é septuagenário.
De regresso teve vontade de ser independente e deciciu abrir um atelier de alta costura, que pouco a pouco foi ganhando clientes. Crescendo chegou a apresntar os seus modelos em Milão, em Viena e outras cidades. Decidiu então montar uma fábrica onde se trabalhava a roupa já de forma industrial, e teve sucesso. Finais dos anos sessenta inicia dos setenta.
Chega entretanto o 25 de Abril, nessa altura a sua fábrica teria 93 trabalhadoras e laborava em pleno. Os aumentos salariais da altura, o célebre salário mínimo de 3300, levaram-no a acumular algumas dívidas ao pessoal, que em 1975 lhe ocupou a fábrica. Apropriaram-se das roupas, deixaram de cumprir encomendas, e tudo caiu, até dois anos depois lha ser devolvida pelo tribunal totalmente destruída. Ainda tentou a recuperação, mas a situação tornou-se insustentável e acabou por encerrar nos finais dos anos setenta.
Sem trabalho, foi para Sines trabalhar como indiferenciado nos estaleiros, fazer limpezas e outros trabalhos menores. Algun tempo depois surge a hipótese de trabalhar num restaurante e aí vai-se afirmando, até o patrão lhe dar quota e tornar-se sócio. A certa altura decide vender essa quota, e com o algum dinheiro feito, compra no Algarve um restaurante que estava quase falido, e recupera-o. Com o tempo alarga o negócio para outro restaurante na mesma zona e mais tarde outro no Alentejo na terra natal da esposa. Mas agora já os anos e o cansaço vão pesando aluga alguns deles, vende outros, e pensa parar de vez.
Mas como parar é morrer, para pessoas esta cêpa, decice comprar uma carrinha adaptada a snack bar, e percorre as feiras, quando lhe apetece, no Alentejo, a vender as suas bifanas e as bebidas correspondentes. Agora apresenta-se como o mais antigo taberneiro presente na Ovibeja, onde todos os anos vende bifanas, as melhores da Ovibeja segundo ele, na sua carrinha que tem como nome "Tasca Gado", passe a cacofonia... e todos os anos, só lá, vende 5000 bifanas na semana, para ter uns cobres.
Afinal o taberneiro é algo mais, e percebi porque desconfiei... Só tem um problema, detesta o Tony Carreira, pois ele vai todos os anos à Ovibeja, e nesse dia nada se vende porque as fans do dito levam a comida toda de casa e nada consomem. Como diz o outro "tirando isso, tudo bem".

Histórias de vida

Esta é outra componente das "estadias" hospitalares. Companheiros que nos querem contar a história da vida, em episódios, todos os dias um pouco, para ocupar o tempo vazio, e afastar os pensamentos da doença. Depois reconstituímos tudo, e eis que surge uma vida vivida, que nos conduziu até ali àquela cama. Por vezes as histórias são contadas para nos tirar daquela posição de infortúnio, que é a doença, e dizer já fomos outra coisa. Confesso que gosto de ouvir, mas jamais aplico a mim mesmo o princípio, a minha vida é apenas património meu, guardado e fechado numa caixinha.
Vem a propósito a história do senhor Jerónimo, meu companheiro de quarto, que após uma síncope, enquanto conduzia, viu a vida salva e dos familiares, porque o filho, do banco de trás conseguiu segurar no volante e manter o carro na estrada, e a esposa, a seu lado, "mergulhou" para os pedais e pegando no pé do marido carregou a fundo no travão, enqunto o filho puxava o travão de mão, isto já com o carro a deslocar-se com bastante velocidade. Uma sorte...
Mas deixo a história para outro post, a cabeça já me pesa, e penso que aquilo que descrevi já é uma verdadeira história de um momento em que a vida e a morte estão ali lado a lado, e nós em cima do muro sem saber para onde se vai cair.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O fiel amigo


Não se trata de um cão ou um gato, muito menos do bacalhau, todos interditos nos ambientes hospitalares. O meu fiel amigo no hospital é o iPod. Isso mesmo, essa caixinha prateada, de onde jorram horas e horas de música, uma alta fidelidade portátil, onde tenho várias centenas de CD's armazenados para posterior consumo. Depois está sempre dísponível, colocam-se os "phones", e escondemo-nos dentro da cama, fingindo que estamos a dormir.

Até algum tempo, eu dizia que o melhor local para se ouvir música era o carro. Pela sensação de intimidade, e o envolvimento que nos dava, quando fazia grandes viagens sózinho. Hoje sei que no iPod é muito melhor.

Mas atenção, para mim. no hospital nem tudo dá para ser ouvido, dado o estado de debilidade em que me encontrava. Rock nem pensar !! Pop só muito ligeiro, e de preferência portugueses, como o Rui Veloso, alguma coisa do Palma, e uma descoberta que fiz no hospital, o Pedro Abrunhosa. Tinha um CD gravado que pouco tinha ouvido, mas agora descobri que para além das músicas conhecidas, estão no interior do CD outras, que nunca passam, excelentes para uma audição mais calma.

Mas o instrumento ideal para se ouvir é o piano. Desde o clássico da Maria João Pires, ao jazz do Bernando Sassetti, Pinho Vargas, Michel Petrucciani, Keith Jarrett, Bill Evans ou outros.

Ouve-se bem alguma música brasileira, a começar pela Rosa Passos, assim um João Gilberto feminino e actual, passando pelo Chico entre outros.

Ouve-se bem jazz cantado, e aí o primor é a Paula Oliveira de que tenho tudo, 4 CDs, que ouvi muitas vezes, ou a Maria Anadon. O estrangeiro ouvi a Stacey Kent, e a música francesa também ajuda, seja mesmo a Carla Bruni ou a Coralie Clement.

Obrigado iPod pela tua amizade. Aliás só dei 230 euros por ti, uma exorbitância, porque sabia que mais dia menos dia mos devolverias em prazer neste contexto sempre solitário.
Não foi por acaso que mandei inscrever na parte de trás do iPod a frase "musique du coeur".

domingo, 29 de agosto de 2010

Porque é que os hospitais estão cheios ?

Nesta última "estadia" não estive em Cardiologia, como habitual, mas em Medicina Interna, para onde vão todos os casos que não se sabe bem do que sofrem...
Estava numa enfermaria com seis companheiros, e que companhia. Para além de mim, apenas um falava, levantava-se e tinha alguma autonomia, era o José. de cerca de quarenta anos.
Os restantes quatro teriam idades muito acima dos oitenta anos, estiveram toda a semana sem falar, sem se mexer, alimentados por uma sonda do nariz até ao estômago, todos usavam fralda, que era mudada com regularidade, recebiam familiares, mas não reagiam à sua presença, sempre na mesma posição. De vez em quando suspiravam, ou emitiam ruídos pois a sonda entupia e tinha de ser aspirada pelas enfermeiras. Um deles tomava morfina, e todos tinham, custa dizer, a morte estampada no rosto muito sofrido. Alguns encontravam-se ali há dois meses e mais, pois os familiares eram impotentes para deles se ocuparem.
Realço aqui o carinho com que eram tratados pelas enfermeiras, todas jovens de menos de trinta anos, em inicio de carreira, e que naturalmente por essa razão apanharam estes trabalhos mais duros. Mas falavam com eles, apesar da falta de resposta, faziam-lhes carícias, e procuravam sempre o seu bem estar, apesar de nada receberem em troca, nem mesmo a esperança de os ver melhorar um pouco. Chamavam-nos pelo nome próprio, João, Manuel, Fernando e Salgado, com muito respeito.
Ora estes doentes deveriam estar onde?
Numa unidade de cuidados continuados ou mesmo paliativos, coisa que em Portugal é ficção. E outros doentes a quem pode ser devolvida a saúde, arrastam-se em urgências intermináveis e em macas nos corredores dos hospitais.
Que raio de país !!!

De volta ao senhor Manel das bombocas


Outra das ocupações do tempo que tive no hospital foi fazer uns bonequitos de alguns companheiros de quarto. Este é o já referido senhor Manel, enquanto "batia" uma sorna, com a barriguita cheia dos seus pitéus de eleição. Vejam que regalado... com bombocas fica-se assim. Recomendo como suporífero...

Nova ausência nova viagem !!!

Pois é... Após aquelas semanas de hospital as saudades fizeram-me regressar ao hospital mais uma semana, tendo saído na passada sexta feira. Viraram-me por dentro e por fora, análises e mais análises, endoscopia, colonoscopia, TAC, mas afinal apenas uma pequena inflamação no estômago foi detectada, ou usando uma linguagem mais rigorosa, uma esofagite e uma antrite erosiva, na TAC entre outros primores de pouca monta detectaram uma finíssima síndrome de Chilaiditti.
Tudo isto foi precedido de um belíisimo fim de semana apenas a beber água com uma mistela de sabor entre o doce e o salgado, e uma segunda feira, dia dos exames, totalmente em jejum, o que juntou fragilidade à já existente. Muita parra pouca uva, mas com estas viagens e estadias nove quilos já voaram do meu corpinho, sabe Deus para onde, pois só mesmo a balança sabe que não estão lá.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Red roses too...

Durante o meu internamento a minha mulher tinha um certo número de compromissos, e logo na fase mais delicada dos problemas. É sempre assim, o que tem de acontecer acontece nos piores momentos. Entre os diversos afazeres havia um totalmente inadiável, a defesa da tese de doutoramento na Universidade de Aveiro. Já tinhamos acertado como se iria fazer, eu iria assistir, naturalmente. Agora tudo por água abaixo, a data de 22 de Julho era difícil de alterar, e um trabalho de 6 anos poderia perder-se. Aqui se distinguem as pessoas de uma outra dimensão. Carregada de preocupação, cortou comigo o mais possível, apenas mantendo o contacto telefónico diário, e preparou tudo o necessário, nada pouco, para ir a Aveiro, onde defendeu a tese com a maior presença de espírito, mas certamente o coração apertado e a lágrima no canto do olho, e ficou aprovada !!! Grande mulher...
Na véspera do 22 de Julho, usando cumplicidades várias, consegui fazer entregar um ramo de rosas a partir da unidade onde estava internado, no hotel onde estava a Maria Augusta com votos de força, a partir de alguém que as estava a perder...
Grande mulher, um grande beijinho, ganhamos forças também com as forças dos outros.
Caso para cantarolar "I see trees of green... red roses too..."

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O senhor Armindo foi a Lisboa

O senhor Armindo, octagenário rural alentejano de cêpa, veio com uma dor no peito duma dessas terras do Alentejo distante, não sei se Selmes, Brinches, Penilhos ou outra, não importa pois nestas histórias todos os nomes são inventados... O seu destino era fazer uma cateterismo para resolver o seu problema (para quem não sabe, trata-se de um exame indolor, mas assustador, pois por um orifício feito numa artéria nas virilhas, é introduzido um tubo que sobe até ao coração, através do qual se procura desobstruir alguma veia entupida).
Esse exame não é possível realizar em Beja, e os doentes vão a S.Marta para o fazer.
"Senhor Armindo, amanhã vai a Lisboa fazer o seu exame ao coração" disse-lhe a enfermeira, ao que o senhor Armindo responde "Ai senhora enfermeira é a primeira vez que vou a Lisboa!"
Lá do meu canto saltei de estupefacção. O senhor Armindo ía a primeira vez a Lisboa, e logo por tal razão !!!
Pus-me a pensar a imagem com que o senhor Armindo ficaria de Lisboa, visto na posição de deitado numa maca de uma ambulância. Talvez se recorde dos pilares da Ponte 25 de Abril, do Aqueduto e do Túnel do Marquês, tudo isto visto de baixo para cima. Que cidade estranha a capital do país, pensará o senhor Armindo, e de certeza recordar-se-á da porta de entrada das ambulâncias onde está inscrita a frase "Clínica do Coração", ou talvez não, pois pareceu-me que o senhor Armindo não sabia ler nem escrever.

domingo, 15 de agosto de 2010

O senhor Manel das bombocas

Observar, eis uma excelente ocupação hospitalar. Observar o quê? Desde logo o mais óbvio, o tecto. Depois já conhecemos todas as mossas, riscos, defeitos, cores, traços de sujidade, ou de limpeza mal feita, e observamos outras coisas. Enfermeiros/as, companheiros, visitas, objectos que entram e saem, e as nossas visitas sempre esperadas.
Então observei o meu companheiro nos cuidados intermédios, o senhor Manel, acima de oitenta anos, que ali chegou, ao que foi dito, por ter tido uma síncope, de manhã, enquanto "matava o bicho".
O senhor Manel quase não falava. Apenas dizia "naquero!". Nada queria, nem pequeno almoço, nem almoço nem jantar, lanches ainda menos, e para tratamentos ou medicação era mesmo uma "trabalhera" que as enfermeiras tinham. Sempre o mesmo "naquero, naquero, naquero!!!"
Mas o senhor Manel afinal quereria alguma coisa ?
Entra agora em cena uma segunda personagem, a sobrinha do senhor Manel, e sua única visita, que todos os dias do alto do seu metro e setenta e dos cerca de mais de cento e vinte quilos, vinha carregada de sacos do Modelo, e lhe deixava dezenas de sumos, leites com chocolate, embalagens gigantes de bolacha Maria, quilos de bananas, e outras embalagens de cores garridas, plenas de calorias.
O senhor Manel, perante a impotência das enfermeiras bebia três leites com chocolate seguidos, seis bananas numa manhã, litros de sumos artificiais, e a isto nada dizia "naquero!".
Cereja em cima do bolo, o senhor Manel comeu de seguida uma embalagem de seis bombocas, que o consolaram. E eu a pensar que já não existiam bombocas, para além daquele conjunto musical de duas meninas em muito pouca roupa!!!

Cuidados de hotelaria

No meu tempo na enfermaria, e foram duas semanas, eis que me surge um companheiro de quarto, eram três camas, e este era mesmo ao meu lado, com um poder de ressonar, quer de dia quer de noite, equivalente ao motor de um tractor, com a primeira engatada. Dormir assim, já era...
Após uma primeira noite de inferno, e não sendo humanamente possível trocar, o pessoal de enfermagem teve dó de mim, e todas as noites pelas dez horas, procuravam pelo serviço de cardiologia, uma cama desocupada para onde ía, de almofada debaixo do braço, copo de água numa mão, e porque não dizer, o urinol na outra, ocupar uma cama diferente todos os dias, rezando as orações para que não chegasse o dia em que tudo estivesse ocupado.
Dado que na nossa enfermaria uma das camas esteve sempre desocupada, mas essa não interessava, o figurão ficava com a enfermaria só para ele, mas o meu sono estava garantido. Isto só é possível porque o pessoal de enfermagem preocupa-se com as pessoas, apesar do incidente do anterior post. Verdadeiros cuidados de hotelaria, num hospital público. A minha paz de espírito agradeceu.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Cuidados intermédios

No hospital o tempo é aquilo que se mais tem, e aquilo que mais custa a consumir. Vamos vendo o que se passa, atentos aos movimentos das enfermeiras e restante pessoal, pois na unidade de cuidados intermédios, onde estive, estão sempre presentes. As máquinas a dar alarmes por algo se ter passado, os ruídos do nosso corpo, a atenção permanente ao bater do coração, como se fôssemos num avião, com medo, atentos ao ruído do motor, e cada mudança de sonoridade nos desse um alerta. Damos atenção a conversas dos nossos vizinhos de cama, cuscamos a conversa do pessoal de enfermagem, inquietamo-nos, quando nos sentimos sós, pois esse pessosl também come, e por vezes ficamos sem companhia. Os fios saem do corpo para dar as informações necessárias a máquinas inteligentes que sabem mais de nós que nós mesmos. Somos alguém. Embora por vezes se sinta uma enorme solidão.
Numa das minhas primeiras noites na unidade acordei com o monitor, atrás da minha cabeça a dar alarme, e inscrito e a piscar um número: 168.
Queria dizer acordar pelas três da manhã com 168 pulsações, um ritmo inquietante. No silêncio da sala, ninguêm, além dos quatro companheiros. Chamei, clamei, o mais alto que pude, e aquele número ali permanecia a piscar 168, 170, 169. Após alguns minutos de aflição, e uma vez atingida a frequência de 172, o meu CDI disparou, e levei o tal "coice de cavalo" no peito, que me deixou atordoado. Mais uma vez o meu seguro de vida tinha funcionado.
As enfermeiras apareceram esbaforidas alguns minutos depois, e pediram desculpa, pois tinham ido buscar umas bolachas, e naquele silêncio sepulcral tardaram a ouvir.
Meio estremunhado, apavorado e sem ânimo aceitei as desculpas. Afinal deveriam instalar uma campaínha de chamar, coisa que não existe porque numa unidade deste tipo o pessoal de enfermagem "está sempre presente" a monitorizar os doentes.

domingo, 8 de agosto de 2010

Ausência prolongada

Os poucos eventuais leitores deste blog podem pensar estranha esta ausência. Férias??? seria bom. Na realidade o meu coração mais uma vez fez estragos e estive de 15 de Julho a 4 de Agosto internado no Hospital de Beja. Estou agora em casa já a recuperar, mas vai lentamente. Havemos de ter dias melhores decerto para poder continuar a estar com todos aqueles de que gosto, e que gostam de ler as minhas divagações... Hoje não há foto pois a cabeça ainda não dá para a procurar.