Era um dia igual aos outros. Uma manhã cinzenta. Tinha acordado muito cedo, os trabalhadores estremunhados estavam, como sempre, a matar o bicho na tasca do Tira-Picos. Esperava o autocarro pachorrento na paragem, como em todos os outros dias, seriam cinco e meia, seis menos um quarto. No interior da camioneta da carreira para Cacilhas, gente ensonada pendia, com a cabeça encostada aos vidros sujos e embaciados. Tlim tlim pode seguir !!! o fumo enchia o autocarro com um cheiro intenso, mistura do cheiro das beatas , atiradas ao chão, com outros mais orgânicos... Os cigarros fumados ávidamente até à pirisca, eram atirados ao chão e pisados sem comiseração, o que fazia do chão uma pequena lixeira.
O sono, o silêncio, a modorra a todos entranhava.
A cada paragem do autocarro entravam duas ou três pessoas, cigarro nos beiços, grunhiam um bom dia cavernoso para os restantes passageiros, Afinal todos da mesma classe trabalhadora, que na altura se chamavam de classes laboriosas. Estudantes um ou outro, dos que entravam às 8, como eu.
Após muitas paragens, e tombos que lhes estavam associados, eis que chegámos ao nosso destino, o cais de Cacilhas. Ainda era noite. A neblina era visível junto dos candeeiros do largo, produzindo uma auréola amarelada à volta das lâmpadas de luz triste. A maioria dos passageiros ficava por ali, trabalhavam nos estaleiros de construção ou reparação. Na Lisnave, na Parry&Son, ou noutros no cais do Ginjal, em lojas ou oficinas. Todos teriam de comer a sua "bucha" antes de pegar às sete, num dia de trabalho de muitas horas. Sentavam-se no chão em frente aos portões de ferro dos estaleiros e ali mesmo comiam o pão que vinha de casa.
Outros, como eu, saíam no largo e esperavam pelo barco para o Terreiro de Paço. Apanham humidade na cabeça enquanto não abriam a cancela, que consistia numa simples corrente que um marinheiro, que tinha dormido ali mesmo, num barraco no pontão, abria quando se aproximava a hora da partida do barco, e fechava alguns momentos antes, para evitar que os passageiros atrasados, à corrida, se lançasem do pontão para as esquilhas do barco, e caíssem nas águas frias e sujas do rio.
Assim, aguardava. Um cheiro misto de maresia, lodo e esgoto entranhava-se nas narinas. Puxava-se a gola para o pescoço, para suportar a humidade.
A entrada no barco cacilheiro, onde o cheiro a maresia se confundia com um intenso odor a urina, fazia-se por uma prancha de madeira sem guardas, que subia e descia ao balanço das ondas leves do Tejo. O interior era desolador. Bancos de madeira corridos, tapumes de lona mal cheirosa de tanto mofo, chão pejado de beatas, lâmpadas de uma luz baça que pediam "apaguem-me"...
Afinal o conforto possível por um bilhete de sete tostões!
Quando os motores do barco se punham em marcha uma intensa vibração sacudia os passageiros, um rouco ensurdecedor vinha das suas entranhas, e eu olhava para o fundo do poço das máquinas, donde saía um cheiro forte a combustível, e um calor intenso que nestes dias de Abril frio, era agradável. No fundo apenas um homem de calças de cotim e mangas de camisa, cumpria as ordens que vinham da torre de comalndo; "à ré", "média", "todo o vapor", etc, as ordens sempre acompanhadas com o tilintar de uma campaínha. O maquinista tinha um ar esquálido, normal em alguém que vivia o seu dia de trabalho sempre abaixo do nível da água, suportando ruído e cheiro próprios de um condenado.
A viagem fazia-se sem sobressaltos e durava cerca de quinze minutos. Caso quisessemos, e se o frio permitisse, podíamos abrir a porta e viajar na amurada. Aí apanha-se o vento da manhã, ouvia-se o ruído das águas cortadas pela proa do cacilheiro.
Se o frio fosse mais forte, podíamos acompanhar a viajem olhando o Tejo, onde os navios, ainda no escuro da madrugada pareciam sombras plantadas no meio do rio; havia por ali sempre três ou quatro prontos para levantar âncora e partir para os confins deste Portugal, que se estendia entre o Minho e Timor. Bastava só imaginar, pois desse Portugal pouco se sabia para além do que vinha nos livros de História oficiais e únicos, ou das notícias censuradas da Emissora Nacional.
Costumava observar o movimento dos barcos, e à medida que nos aproximavamos do Terreiro do Paço, avistavam-se as luzes e os edifícios iluminados duma praça, áquela hora quase vazia, e onde a manhã parecia começar a nascer.
Era naquela praça que eu trabalhava. Não na praça, mas num dos seus edifícios. No entanto naquele dia, em vez de ir trabalhar, ía para outro local, para a escola onde estudadva o IST, que ficava mais longe, na Alameda. Tinha nesse dia um exame oral, uma disciplina com um nome estranho, "sistemas lógicos", cuja matéria pareciam o contrário de toda a lógica, em particular da lógica em que vivia.
Atravessava o rio com estes pensamentos. Por vezes vinha-me à ideia aquelas matérias estranhas, com as quais me iria debater dentro de poucas horas. Outras vezes estendia os olhos pela praça vazia.
Mas nesse dia igual aos outros o Terreiro de Paço não estava vazio. Umas sombras gigantescas espalhavam-se pelo largo circundando o "cavalo do D. José". A neblina da manhã não deixava ver com clareza do que se tratava. Mas à medida que o barco se aproximava para iniciar as manobras de atracagem, já se ouvia o ruído dos motores a iniciar a marcha a ré, viam-se com mais nitidez um grupo de veículos militares, tanques, chaimites, e algumas pessoas fardadas que se movimentavam.
Algumas conjecturas passavam pela cabeça dos passageiros que observavam o mesmo que eu. Ninguèm ousava um comentário. Apenas o ronco do cacilheiro, o choque contra o pontão, para o que nos tinhamos de agarrar bem, e era o fim da viagem. Era o possível com um bilhete cor de laranja de sete tostões. Saltava-se para o pontão e no cais os ardinas apregoavam o "século e o notícias", "traz a bola"...
Mal sabiam que nesse dia teriam de prolongar as vendas pela tarde fora pois várias edições desses jornais iriam sair e a notícia principal não seria "a bola".
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