sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A noiva judia


Terminei agora a leitura deste pequeno livro de contos de 1992 de Pedro Paixão. Tratam-se de contos quase poéticos e quase todos eles versando uma das relações mais difíceis e antigas do mundo: a do homem com a mulher. Vou deixar aqui um texto para se ver o tipo de linguagem.



"Deixou só uma rosa que depressa feneceu. Mais não recordo para além de certo movimento desastrado dos corpos e uma estranha secura na boca.

E se mais houvesse não bastaria. A satisfação abre também as suas portas sobre nada. Ficamos quietos e não sabemos. Comemo-nos ns boca e no peito. E por detrás de tudo isto há um fundo que é uma paisagem gelada.

Se mudamos de ideias é porque se vão empurrando, uma a uma, para fora. A casa é estreita. Se não fose o mudares subitamente de cara desistia. Esteja á sua vontade. Pode fazer, minuciosamente e sem pressa tudo o que quiser.

Já reparou certamente que comigo não vai a sítio algum. Nem de passear gosto. Continuo imóvel diante da janela do quarto de minha mãe. E o meu inverno chega-me.

Sabendo com precisão que não ficou nada criamos a ilusão da memória. Para isso servem as rosas. E as horas são todas iguais. Por isso vem sempre que queiras. Se te esperasse não te encontrava. E já houve um mistério nisto tudo que desapareceu. Por isso volta a qualquer hora. A casa estreita ond me deito não é minha. Eu quase gosto dsta vida que tenho.

Não queremos saber do que se passa lá fora. Definitivamente terminaremos. Os braços continuam caídos sobre o tampo da mesa. Mas de quem? As palavras que ouvimos são desfeitas. As palavras sagradas seriam soluços de uma ave pousada na tua cabeça. Mas não existem palavras sagradas, claro. Amanhã recomeçaremos.

Não te esqueças que se uma parte é ilusão a outra é verdade. Foi mesmo ela que te amou. Mas há coisas que se não dizem. Como estas. E, claro está, não vale a pena pensar nisso e não se pode evitar. As coisas inúteis são preciosas para as almas sem sossego como as nossas. É quase belo agora. A noite que caiu guarda tudo nas suas mãos fechadas eo brilho dos teus olhos é o de uma estrela de que não me lembrarei. Dorme agora."


"Carta a José" de Pedro Paixão, do livro "A noiva judia"


Espero que gostem...

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