quarta-feira, 21 de março de 2012

Viver sempre também cansa!

Talvez o meu primeiro contacto impressionante (para mim) com a poesia portuguesa. Aí pelos idos de 1970, José Gomes Ferreira, um poeta que não se cansou de viver, o auto-intitulado "poeta militante", que o tinha escrito em 1931... Nesses tempos a vida era uma canseira, havia discursos de Mussolini, bairros miseráveis e homens que soluçam, bebem, riem e digerem. Hoje os discursos são outros. Recordo-o aqui no dia internacional da Poesia, embora seja irónico agora este poema apresentado por mim, cuja vida esteve por um fio...

"Viver sempre também cansa!


O sol é sempre o mesmo e o céu azul

ora é azul, nitidamente azul,

ora é cinza, negro, quase verde...

Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.

As árvores dão flores,

folhas, frutos e pássaros

como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.

Não cai neve vermelha,

não há flores que voem,

a lua não tem olhos

e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.

Soluçam, bebem, riem e digerem

sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,

discursos de Mussolini,

guerras, orgulhos em transe,

automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano

morrer por um bocadinho,

de vez em quando,

e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,

morrer em cima dum divã

com a cabeça sobre uma almofada,

confiante e sereno por saber

que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,

havias de dizer com teu sorriso

onde arde um coração em melodia:

"Matou-se esta manhã.

Agora não o vou ressuscitar

por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,

velar por mim, subtil e cuidadosa,

pé ante pé, não fosses acordar

a Morte ainda menina no meu colo..."

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