quinta-feira, 6 de março de 2014

O meu 25 de Abril (10)

"Quem faz um filho fá-lo por gosto" eis a frase que deixou o pais bacoco de 1969 em estado de choque. Ainda por cima dita numa canção de Simone de Oliveira, seria o mesmo se fosse dita por outra qualquer mulher, pois não era suposto a mulher fazer "por gosto", mas por obrigação, pelo superior interesse da nação em haver a maternidade, que "dá braços à terra e soldados à nação". A frase era de um poetastro ilustre desconhecido chamado Ary dos Santos, nessa altura não era considerado perigoso comunista, nem perverso homosexual, pois nesses tempos essas duas palavras oficialmente não existiam, no lugar de "comunistas" havia "traidores à pátria", no lugar de homosexuais havia "panelei..."  O festival da Canção de 1969, ganho por "Desfolhada Portuguesa", em versão Eurovision, e por Simone, deu brado, pois o Festival era na altura o maior acontecimento televisivo do ano, para além do futebol, e em directo com muito público constituido por convidados, pois directos com público sem ser escolhido era coisa de evitar. A partir de certo momento o nível de qualidade das canções presentes subiu muito, pois os mais talentosos jovens autores começaram a apostar nesta via, num país onde poucas portas estavam abertas. Voltando à "Desfolhada", independente da qualidade da musica e letra, a música é de Nuno Nazareth Fernandes, a reacção mostra o nível dos valores da época, a visão da sexualidade vigente, a perspectiva que se tinha do papel da mulher, e isto não era apenas um questão de governo ou de políticas, mas era assim que o povo pensava, que o povo sentia e vivia, mesmo o povo urbano e mais educado, continuava a ter uma visão castradora, prepotente e falsamente moralizadora da sexualidade e em particular da feminina. Virgindade era virtude, mãe solteira era drama, adultério era crime, violência doméstica sobre as mulheres era socialmente aceitável como prerrogativa masculina, a mulher tem de ser "autorizada" para sair ao estrangeiro, para trabalhar, o casamento é impeditivo para ser enfermeira ou hospedeira de bordo. Como é que se poderia aceitar que fazer filhos fosse "um gosto". Que escandaleira... fica aqui a versão Eurovision da dita "Desfolhada", em que se pode ver Simone "ao vivo e a cores" em 1969, coisa que só cá chegará 12 ou 13 anos mais tarde !!! Simone também faz parte do meu 25 de Abril.

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